Bastam três penadas do legislador para deitar por terra bibliotecas inteiras. Com essa célebre frase, Julius Hermann Von Kirchmann, filósofo, jurista e Procurador da Prússia, falecido em 1884, negava a cientificidade do Direito porque, dizia ele, carecendo de regras e premissas estáveis a sua efetividade e força estariam sempre à mercê das mudanças inerentes ao processo legislativo.
Essa visão negatória do caráter científico do Direito poderia ser transportada para os precedentes, quem sabe, considerando-se que as orientações dos Tribunais, mesmo as consolidadas, só valem até o dia em que forem substituídas por outras, num contínuo vir-a-ser.
Há um certo fundo de razão nisso tudo!
Apenas um certo fundo de razão, porque, embora se atribua aos precedentes a força para criar o Direito, sabe-se que os tribunais não estão autorizados a dizerem o que bem entenderem sobre qualquer coisa. Se o princípio da razoabilidade impede a produção de leis iníquas, o princípio da proporcionalidade proíbe ao juiz ou tribunal de proferir decisões desarrazoadas, de modo que todo entendimento consolidado na jurisprudência tende a permanecer estável até o momento em que, em face dos câmbios sociais, perder a sua atualidade ou deixar de refletir o ideal de justiça presente no espírito do povo.
Um certo fundo de razão, diga-se ainda, porque não há como negar que o Direito, na atualidade, cada vez mais se identifica e se confunde com o que dizem os precedentes, muitos com força vinculante conferida pelos próprios Tribunais. Há países em que a força dos precedentes é muito intensa. No direito saxão, todos os precedentes são vinculantes, naquilo que se conhece como stare decisis, de modo que todas as decisões atuam como fontes de Direito e, em nosso sistema jurídico, parece que estamos caminhando nessa direção, haja vista a força “normativa” das Súmulas, dos incidentes de demanda repetitiva, da assunção de competência, da declaração de inconstitucionalidade, etc
Já dizia, anos atrás, o Juiz da Suprema Corte norte-americana, Oliver Wendell Holmes que Direito era o que os tribunais diziam ser Direito. Ele levou ao limite extremo esse pragmatismo entre 1902 e 1932 e forneceria a base do que passaria a ser denominada como doutrina do realismo jurídico norte-americano. Holmes discordava com muita frequência dos demais membros da Corte em votos sobre matérias consolidadas, sendo conhecido como the great dissenter (o grande dissidente).
Nessas condições, a constatação inegável é de que Direito não está imune ao devenir, ao vir a ser. Se o Direito não se movesse, ele seria um obstáculo às transformações sociais, como alertava Novoa Monreal. E é ótimo que seja assim, porque se não fosse suscetível à transformação para poder continuar disciplinando a vida social diante do novo, o Direito envelheceria, perderia a utilidade e o caos se instalaria.
É sob essa perspectiva que se compreende a função dos precedentes, que são fontes de Direito, inclusive gerando a possibilidade de alteração das orientações jurisprudenciais consolidadas ao longo das décadas. O fato de ter a Suprema Corte norte-americana alterado o entendimento consolidado desde a década de 70 (caso Roe v. Wade, de 1973) para, agora, delegar aos Estados a disciplina sobre permissão ou proibição do aborto, é uma clara manifestação desse devenir do Direito pela via da jurisprudência, sem nunca perder a sua cientificidade, pois, como disse Marshall Berman, inspirado em Marx: tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profano! A própria descrição física da realidade das coisas passou por grave crise quando Heisenberg demonstrou e provou que um elétron pode estar ao mesmo tempo em dois lugares e que é impossível o conhecimento da posição em que ele se encontra aos olhos de quem for observá-lo!
Em suma: a revisitação do entendimento jurisprudencial por meio dos precedentes – tal qual fez a Suprema Corte americana – em verdadeiro overruling – mudando jurisprudência aparentemente imutável, vivifica o Direito sem comprometer a sua cientificidade.